quinta, 28 de março de 2024
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Renata Abalém

Advogada e diretora da Câmara de Comércio Brasil Líbano

A incrível história do Ouroboros brasileiro

A novela dos precatórios remete à triste sina daquele que devora seu próprio rabo

16 setembro 2021 - 13h40
A incrível história do Ouroboros brasileiro

Há poucos anos, mais precisamente em 2017, o Supremo Tribunal Federal enfrentou um julgamento cuja matéria, de assaz importância, não ganhou nem a repercussão midiática que merecia, sequer a atenção econômica necessária. Sob o regime da Repercussão Geral, instituto que cria “filtros” para que os recursos possam ser apreciados pelo colegiado e cujas decisões assumem caráter de “imutáveis”, a Corte decidiu sobre a incidência de juros de mora sobre os precatórios e RPVs – as requisições de pequeno valor. À época, a Procuradoria Geral da União afirmou que tal decisão poderia alcançar um custo extra de R$ 2 bilhões por ano, mas ninguém prestou muita atenção na conta. 

O julgamento, que começou apreciando somente os pequenos valores, acabou por decidir também sobre a correção dos precatórios, ocasião em que vaticinou que incidiriam juros de mora de 1% ao mês, no período compreendido entre a elaboração do cálculo do débito das fazendas (federal, estadual, municipal) até a sua expedição. Nem bem começou a pagar essa conta, o Governo, sob o pretexto de uma Proposta de Emenda à Constituição -PEC, quer dar o calote naqueles brasileirinhos detentores dos créditos declarados por decisões judiciais.

Não pense você leitor, que me refiro à “criancinhas” quando utilizei o diminutivo para nos identificar... nós somos e estamos assim aos olhos do governo: pequenos e diminuídos.  
O calote preparado sob o manto teatral foi um banho de água gelada no mercado e na moral do país. E, pasmem! O mesmo Tribunal que determinou a aplicação dos juros de mora (nada mais que a legalidade!), está “conversando” com o governo para que as coisas se “ajeitem” da melhor forma e, a partir do próximo ano, os pagamentos, aqueles já há muito aguardados, virem água, ou melhor, sejam parcelados em dez longos anos.

O desespero é porque em 2022 a conta de aproximados R$ 89,1 bilhões bateu na porta do credor, 61% a mais que 2021. Sob o argumento de imprevisibilidade desse gasto (?) a PEC está sendo construída.

Diante disso, eu, que sempre escrevi com os mitológicos na cabeça e a filosofia nas pontas dos dedos, sucumbo-me às palavras do Senhor Ministro DIAS TOFFOLI, do próprio do STF, quando apresentou voto no assunto “juros de mora dos precatórios”, no recurso atrás mencionado: 

“Ora, o que é o Poder Judiciário senão um braço do Estado? Lesar-se-á o credor em virtude da demora do Estado em prestar a jurisdição, beneficiando-se, assim, o próprio Estado devedor?”

Pense o que quiser leitor, mas o verbo “lesar” usado pelo Ministro está a replicar nos sinos que moram dentro da minha cabeça, soando desesperadamente com a PEC e a forma de condução da mesma na mesa parlamentar.

Aquela “Proposta” tem intenção de pagar créditos menores, de pessoas físicas (são eles os eleitores), e parcelar em até dez anos os créditos empresariais, originados de demoradas demandas judiciais em que, na maioria dos casos, o governo agiu de forma equivocada ou, devedor nato de obrigação, não honrou com a mesma.

Vamos lá para outra grande “tese do século”. Na forma como divulgada, a PEC se mostra inconstitucional e cairá no colo do mesmo STF para apreciação de conformidade. 
Opino, sem grande “juridiquês” e de forma simplificada, até porque grandes juristas e entendedores já discorreram à enormidade sobre o tema, acerca de duas situações que reputo imperiosas na análise da “Proposta”.

Veja lá que você é um dos brasileirinhos que teve sua demanda judicial devidamente julgada e detém um crédito de precatório. Aí vem a legislação e altera a forma de pagamento ou cria o pagamento de forma parcelada, modificando a “coisa julgada”, que é decisão soberana e se afrontada como pretendido pelo executivo, desrespeita a segurança jurídica. Pergunto qual empresa aposta em uma nação que não tem segurança jurídica ou que as decisões judiciais podem ser modificadas a qualquer momento? Quem faria isso? 

Afora esse argumento de desacato ao que já decidido, os valores devidos após decisão judicial definitiva são considerados propriedade do credor (observe o mercado paralelo que negocia isso), e a PEC, como desenhada, impede que o beneficiário disponha livremente desses recursos. Ou seja, vamos lá entupir o judiciário de ações questionando o parcelamento dos precatórios.

Por evidente, restam aí grandes outras questões, econômicas e morais que orbitam a cena “PEC dos Precatórios”. As econômicas, “risco fiscal”, “orçamento paralelo”, “parcelamento de despesa obrigatória’, não me arrisco a comentar, e a questão moral, é só ler o que os jornais sérios do mundo todo estão dizendo. 

Isso me traz à lembrança um símbolo antigo, visto em várias civilizações e em contextos variados. Você se lembra do Ouroboros? Com certeza já viu em algum lugar. É aquela serpente ou dragão que morde o próprio rabo. O nome vem do grego antigo: “oura” que significa "cauda" e “boros”, que quer dizer "devora".

Assim, o símbolo designa "aquele que devora a própria cauda". Embora, com o passar do tempo, o símbolo tenha agregado várias outras interpretações, aqui vou me ater ao significado literal das palavras que o definem, uma vez que encontrei para o mesmo um sujeito real: um governo que, num trabalho diligente, devora a própria cauda o que, consequentemente, pode acabar por destruí-lo. 

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