sábado, 20 de abril de 2024
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Em meio a endividamento da população, educação financeira ganha espaço nas escolas

Projetos e iniciativas levam aos jovens conceitos como organização das finanças pessoais, controle de gastos e investimentos, além de simular bolsa de valores

03 agosto 2021 - 14h29Por Guilherme Roque
Alunos da rede pública Escola Estadual Anecondes Alves Ferreira da cidade de Diadema, na sala de aula da POLI, na USPAlunos da rede pública Escola Estadual Anecondes Alves Ferreira da cidade de Diadema, na sala de aula da POLI, na USP - Crédito: Cecília Bastos/USP Imagem

Enquanto a população brasileira atinge altos níveis de endividamento, escolas públicas e privadas de todo o país oferecem aos seus alunos projetos de educação financeira com o objetivo de formar cidadãos conscientes de suas finanças. Desde 2020, o tema é obrigatório para estudantes do ensino fundamental e médio de todo o Brasil.

Segundo a Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (Peic), realizada pela CNC (Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo), 69,7% das famílias brasileiras estavam endividadas em junho de 2021, crescimento de 1,7% em relação a maio e de 2,5% em comparação a junho de 2020. Esse é o maior percentual de famílias endividadas no Brasil desde 2010. A parcela das famílias que disseram não ter como pagar suas dívidas e que permanecerão inadimplentes também teve alta de 10,5% para 10,8% na passagem mensal.

A taxa de brasileiros com problemas relacionados às suas próprias finanças cresce na mesma medida que o analfabetismo financeiro da população. No Brasil, somente 40% das pessoas que usam cartão de crédito ou tomam empréstimos de instituições financeiras são alfabetizadas financeiramente, de acordo com o estudo S&P Global Finlit Survey, realizado em 2016.

Para tentar frear essa onda de falta de informação sobre saúde financeira, escolas públicas e privadas do país realizam projetos e iniciativas que visam educar jovens para poupar, se organizar financeiramente e até mesmo investir.

Mudança no currículo

Em dezembro de 2019, a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) atualizou suas novas diretrizes para o ensino em escolas públicas e particulares de todo o Brasil. Dentre as medidas, está a obrigatoriedade da educação financeira para alunos do ensino fundamental e médio.

A BNCC é um documento que determina os conhecimentos mínimos essenciais que devem ser ensinados a todos os alunos da educação básica do país. Isto é, os currículos de todas as redes públicas e particulares do Brasil deverão conter os conteúdos descritos no documento.

Segundo a BNCC, a educação financeira não é uma disciplina específica. Porém, as escolas devem abordar o tema de forma transversal, estando presente em outras disciplinas e áreas do conhecimento, além de matemática, como língua portuguesa, história e geografia.

Propagação

Neste ano, entrou em fase de expansão nacional o projeto Aprender Valor, uma iniciativa do Banco Central que tem como objetivo estimular o desenvolvimento de competências e habilidades de educação financeira e educação para o consumo em estudantes das escolas públicas brasileiras.

“O projeto trabalha a questão da educação financeira não visando apenas os conhecimentos técnicos de matemática, mas também a questão comportamental. Inclusive não trabalha apenas com a disciplina de matemática, mas também com português e disciplinas de humanas, como história e geografia”, afirma Rafael Dombrauskas, técnico da equipe curricular do projeto em São Paulo, que estima cerca de 200 escolas do estado paulista já inscritas na iniciativa.

Além disso, em São Paulo, há, desde 2020, o projeto Inova Educação, em que os alunos dos ensino fundamental e médio da rede pública estadual podem escolher, a cada semestre, aulas eletivas para cursar durante aquele período. Dentre elas, são oferecidas as de empreendedorismo e educação financeira.

“As inovações propostas visam garantir o desenvolvimento pleno a todos os estudantes da rede, considerando o aspecto intelectual, o socioemocional, o físico e cultural dos alunos”, escreveu a secretaria de educação do Estado de SP em nota à imprensa sobre o projeto.

Segundo Dombrauskas, atualmente, existem cerca de 5379 disciplinas ligadas diretamente ou indiretamente com educação financeira na rede estadual de SP. “O projeto tem como principal foco construir um projeto de vida. O estudante tem essa opção de escolha, e muitos escolhem estudar a educação financeira”, diz.

Muito além da sala de aula

Professores à frente das aulas de educação financeira na rede pública do estado de São Paulo contam que os ensinamentos passados aos alunos não ficam somente na sala de aula e vão parar dentro de casa, influenciando os pais e as finanças do dia a dia.

Durante as aulas, os jovens são estimulados a realizar atividades que mostrem o quanto eles “custam” para os pais – isto é, seu custo na comida, energia elétrica, conta de água, entre outros. As eletivas trabalham conceitos básicos de planejamento financeiro e se propõem a colocar em prática os ensinamentos.

“Temos relato de aluno que a mãe estava endividada no cartão de crédito e ele montou uma tabela de controle de gastos para ela. Depois de quatro meses, a mãe não pagava mais o mínimo do cartão e teve um controle maior desses gastos”, explica Teresa Cristina Ogera, professora de física e práticas experimentais da EE Milton da Silva Rodrigues, na zona norte da capital paulista.

“A gente já teve família que veio agradecer. Eles estavam endividados com cartão de crédito e cheque especial e o filho falou de se organizar na planilha e ajudou a sair do vermelho”, diz Marilene Magalhães Chichetti, professora de matemática e educação financeira, que trabalhou juntamente com Teresa.

No curso, os alunos aprendem dicas fundamentais para a saúde financeira, como a diferença entre querer e precisar, fazer escolhas de consumo consciente, formas de pagamento e economia do dinheiro que recebem. Antes da pandemia do novo coronavírus, havia, inclusive, idas à B3 para o acompanhamento das negociações diárias.

“São até mesmo coisas simples, como não ir ao mercado antes de comer, porque aí você compra mais”, conta Marilene. “Se as meninas fazem unha e cabelo toda semana, então passam a fazer a cada 15 dias para poupar. Ou se passavam no fast-food depois de ir ao cinema eles cortam isso, e então vão ficar só na pipoca”.

Investimentos como catalisador

Já na rede privada, o exemplo vem a partir dos investimentos. A Escola Lumiar, com unidades em São Paulo e no Rio Grande do Sul, implementou no último ano um projeto de educação financeira que envolvia a simulação de investimentos na B3, a bolsa de valores brasileira.

Na iniciativa, os estudantes usaram uma plataforma que simula, com fidelidade, investimentos em ações. No simulador, os jovens tinham R$ 100 mil para comprarem e venderem papéis de empresas nos pregões da Bolsa.

“Os alunos faziam a simulação para ver se conseguiam lucrar ou ter prejuízo. Depois, dentro dos encontros, a gente falava sobre matemática e também sobre investimentos, porque eles tinham que saber, por exemplo, acréscimo e decréscimo percentual. Teve aula que a gente passou matérias sobre quais as melhores ações para serem compradas naquele momento”, explica Raquel Lameiras de Carvalho, mestra de matemática da Lumiar São Paulo.

A escola privada também teve o "jogo de investimentos" – inspirado no jogo “banco imobiliário” –, projeto que contemplou investimentos de curto e longo prazo, em que cada dupla de estudantes iniciava com uma quantidade diferente de dinheiro com o objetivo de chegar com lucro ao final. Ainda nesse projeto, eles receberam semanalmente um salário mínimo e tiveram que calcular suas contas, pagar seus investimentos e decidir no que investir na semana seguinte.

Demanda aquecida

Tanto no caso da escola pública quanto na escola privada, a demanda dos alunos por iniciativas de educação financeira se mostrou alta. Na escola estadual Milton da Silva Rodrigues, por exemplo, havia mais alunos inscritos do que a quantidade máxima de vagas disponíveis.

“Nossa eletiva é sempre muito procurada. Teve período que eles queriam até montar uma empresa, seu próprio negócio, aí eles foram atrás de quanto custava para abrir uma empresa, o preço de cada produto, o lucro”, diz a professora Marilene.

Na Lumiar, a demanda é tão grande que outros programas já foram implementados na escola. Os alunos já criaram empresas, produtos e buscaram entender como funciona o salário mínimo e auxílio emergencial em diferentes países.

“Tudo que vem para a sala de aula vem dos interesses dos estudantes. Normalmente, quando levantamos esses interesses, aparecem questões da vida real, não vem só conteúdos disciplinares”, conta Maria Soledad Gomez, diretora da Lumiar Porto Alegre.