sexta, 26 de abril de 2024
Entrevista

"Em breve teremos o primeiro unicórnio da favela", diz Gilson Rodrigues, presidente do G10 Favelas

Morador de Paraisópolis, Gilson explica o potencial econômico e empreendedor das favelas e conta, em entrevista para a SpaceMoney,  projetos ambiciosos que estão sendo desenvolvidos

10 março 2022 - 15h47Por Tatiane Calixto

O G10 Favelas é um bloco de líderes e empreendedores de impacto social que atua em favelas espalhadas pelo Brasil. Assim como os países ricos do G-7 (Alemanha, Canadá, Estados Unidos, França, Itália, Japão e Reino Unido), essas comunidades uniram forças para alavancar o próprio desenvolvimento econômico e protagonismo.

Gilson Rodrigues é presidente do ‘bloco’ que iniciou 2022 mergulhado em inúmeras ações e projetos ambiciosos: de um banco que oferece crédito a microempreendedores e quer se tornar o BNDES nas comunidades, passando pela Bolsa de Valores das Favelas, até um projeto que pretende realizar entregas com drones em Paraisópolis, São Paulo.

No entanto, o grande desejo e principal desafio vai além do crédito ou negócios. É mostrar as favelas além do estereótipo violento, mas como potências que podem consumir R$ 159 bilhões por ano e são formadas por muita gente criativa e competente.

“Nós queremos fortalecer o Brasil. Eu não acredito no Brasil de Alphaville e Alfavela. Nós somos 17 milhões (de moradores em favelas) e podemos contribuir com a economia do Brasil”, afirma Gilson. Confira a entrevista:

Queria entender de que maneira o G10 pretende fortalecer economicamente as comunidades e por que a gente precisa falar no fortalecimento econômico das favelas. Que especificidades logísticas, sociais e até relacionadas ao preconceito exigem ações direcionadas?

Estamos falando do fortalecimento das favelas do Brasil porque as favelas sempre foram vistas como violentas, marginais, carentes e, na verdade, as favelas são potentes, organizadas. Elas têm uma estrutura econômica que funciona e, se for alavancada, tem condições de gerar trabalho e renda para a comunidade. 

As favelas no Brasil têm um potencial de consumo de R$ 159 bilhões por ano e nós estamos trazendo esses números porque não se falava sobre isso. E se elas tiverem estímulo, acesso a crédito e informação, elas podem movimentar muito.

Estamos buscando criar um novo olhar sobre a favela. Aquela favela em que você vê um monte de pessoas passando dificuldades não é a favela que eu sonho em morar. Nós não queremos morar na dificuldade, em cima do córrego, na ribanceira, sofrendo toda vez que acontece uma chuva. Nós viemos — em grande parte, os nordestinos vieram — para ficar ricos, ajudar a família que ficou no Nordeste e transformar a vida. Ter dinheiro no bolso.

40% dos moradores da favela sonham em empreender. Então, nós estamos tirando esse sonho do papel, levando oportunidade de informação, trazendo especialistas como Sebrae, Senai, Fundação Dom Cabral, uma estrutura que as pessoas tinham que sair para ter acesso.

Você falou na questão de sair para ter acesso. Muitas vezes, o correio não chega na favela, não é possível comprovar um endereço. Essa é uma questão que pesa? E já emendo uma outra pergunta porque você falou do crédito: a gente vive um cenário econômico que encareceu muito o crédito e tem pressionado demais os microempreendedores. Como você encara essa situação e de que forma o G10 tem trabalhado para ajudar?

A situação das cidades informais é um problema grande e só tem crescido no Brasil. São 17 milhões vivendo nas favelas. E não queremos viver dois Brasis. Um Brasil que tem acesso a tudo, inclusive ao home office na pandemia, e outro que está passando fome.

Aqui vivemos numa área ocupada em que é mais difícil abrir uma empresa, você não tem acesso a uma escritura, alvará. E quando você vai para as grandes empresas, aos bancos, pedir acesso a crédito, eles vão pedir tudo isso e o empreendedor-favela não consegue comprovar todas essas etapas. É difícil criar esse processo de integração com esse Brasil de oportunidades que, por vezes, não chegam aqui. 

É uma situação de criar oportunidades em um momento em que a inflação está alta, o arroz cada vez mais caro. A carne é artigo de luxo. Antigamente, era substituída por frango. Hoje em dia, nem isso. Então, nós estamos buscando criar oportunidades em um Brasil onde está faltando uma política pública clara para essas pessoas que estão passando dificuldade.

Nós entregamos no último período 600 mil pacotes em 8 favelas do Brasil por meio do projeto Favela Brasil Xpress. São pessoas que antes queriam comprar pela internet, mas os produtos não chegavam. Isso representa quase R$ 40 milhões que saíram da favela. Agora, estamos querendo fazer o caminho inverso. Criando plataformas de e-commerce para vendermos nossos produtos. 

Então, estamos prevendo que, apesar de a economia não estar reagindo como deveria, do número de desempregados e da situação de insegurança alimentar, nós que estamos nas favelas poderemos ter um grande ano. 

Esses números que você traz mostram o quanto as favelas têm potencial para fazer parte de uma solução econômica para o país…

Nós queremos fortalecer o Brasil. Eu não acredito no Brasil bloqueado. O Brasil de Alphaville e Alfavela. Nós somos 17 milhões (de moradores em favelas) e podemos contribuir com a economia do Brasil e nessa retomada, nós estamos trabalhando para que esse novo normal possa representar oportunidades. 

E, dentro desse contexto, qual a importância do empreendedorismo para as comunidades? Em uma entrevista sua, você comentou que existe a periferia dentro da periferia. Como o empreendedorismo pode ser uma ferramenta de desenvolvimento e mais igualdade? 

O empreendedorismo pode ser uma alavanca de desenvolvimento para os territórios das favelas e para o Brasil. Temos percebido que o brasileiro é inovador, há muitas oportunidades que não foram colocadas em prática ou que estão em prática no mercado, mas nas favelas não chegam.

Por exemplo, os aplicativos de carro que não entram na favela. Mas os motoristas que dirigem são moradores da favela. Chega a ser um constrangimento o vizinho ter que atravessar a rua para pegar um aplicativo. Por isso, estamos desenvolvendo nosso próprio serviço de aplicativo.

Eu percebo que a gente tem o potencial de inovação, de criar novas estruturas. É desmistificar essa favela de pessoas que não pensam sobre o seu próprio futuro. E quando a gente fala que não existe um Morumbi bom com Paraisópolis ruim, é também uma provocação ao povo do Morumbi: se você quer resolver os problemas pelos quais nos culpam, participe também.

E a melhor forma de combater a insegurança é trazendo a convivência. E eu provoco ainda mais, dizendo que 99% da população que vive nos bairros é honesta como a população que vive na favela.

O Brasil é um grande espaço de oportunidades porque ainda tem muitas soluções que precisam ser criadas. Nesses espaços que ainda existe algum tipo de escassez é onde há mais chances de se fazer as coisas acontecerem.

Falamos de crédito, mas o sucesso de um negócio não depende só disso. Qual a importância de se falar em educação financeira com as comunidades, com os jovens da comunidade, com as mulheres que, muitas vezes, são chefes de família, mães solo?

Temos percebido na prática aqui, com o G10 Bank, que não adianta só dar o crédito. Às vezes, dinheiro na mão é vendaval. Mesmo com o crédito, as pessoas não conseguem realizar os seus sonhos. Então, junto com o crédito que o G10 Bank tem dado aos empreendedores, nós damos mentoria, acompanhamento, ajuda com plano de negócios, com conexões.

Também temos trazido educação financeira, outras instituições e experiências. E te garanto que o G10 Bank emprestou para 87 empreendedores, a maioria já é rico e alguns milionários. Então, estamos provando, na prática, que é possível e nós queremos ser a maior rede de apoio a pequenos e micronegócios de favelas do Brasil, como o BNDES da favela.

Aproveitando que você comentou, queria que você falasse mais sobre o G10 Bank e sobre a Bolsa de Valores da Favela. Que ações são essas e como funcionam?

O G10 Bank é uma Empresa Simples de Crédito (ESC) criada às vésperas da pandemia, com intuito de levar acesso a crédito a essa população que está excluída. Essa população não está tendo acesso por uma série de burocracias que os bancões nos impõem.

Então, estabelecemos alguns critérios de atendimento para microcrédito e financiamentos, priorizando mulheres, empreendedores jovens — que têm fama de maus pagadores... A gente olha para a lista e vê para quem eles estão negando e o porquê está sendo negado e estamos dando oportunidade a essas pessoas.

Oferecemos crédito de R$ 1 mil a R$ 15 mil. Mas o mais importante, para além do dinheiro, é a mentoria, os cursos e as conexões que também oferecemos aos empreendedores. E um olhar para o nosso próprio mercado. Porque, às vezes, uma empresa de roupas tem o sonho de abrir uma loja no shopping, mas se olhar para o público interno, ela vende mais.

E a Bolsa de Valores das Favelas?

E inovamos novamente com a Bolsa de Valores das Favelas, que pretende ser a maior startup de investimento para empreendedores de favela, conectando empreendedores a investidores. Trazendo oportunidade de acesso de maneira leve. Às vezes, recebemos a visita de um investidor-anjo, que não é um investidor anjo e só quer roubar o sonho, colocar um dinheirinho e levar boa parte de uma ideia que ele já tem noção que pode dar certo.

Na bolsa, a gente monta um plano de trabalho por 5 anos, ele vai dizer qual investimento que ele gostaria de receber e qual o valor de cotas ou de lucro que ele quer devolver. Estando legalizado, ele coloca na plataforma e começa a receber financiamento. Ao invés de você fazer um bingo, uma rifa, você passa o link e os amigos e familiares podem ajudar.

Funciona na plataforma de investimento DIVI-hub e o investimento é pela compra de frações do negócio, que já especifica as formas de remuneração que o investidor terá.

A Bolsa traz um universo que talvez estivesse distante de muitos moradores de favelas, inclusive com termos como IPO, investidor-anjo, análise de risco de um negócio. Esse também é um trabalho de inclusão?

O que estamos fazendo é um processo de democratização da bolsa de valores. Trazendo temas que, por vezes, só vemos na TV. Todos os dias os jornais falam da bolsa, preço do dólar e eu nem sabia para que servia, mas se aparecia todos os dias, imaginava que era importante.

Começar a trazer esses termos significa uma integração da favela. E muitos termos são em inglês e estamos trazendo uma aproximação, porque tivemos que aprender na marra, por exemplo, o que era lockdown e home office. Então, nesse formato, o IPO é a oferta pública. Fizemos até um dicionário da bolsa que deixamos pendurado aqui.

Estamos empoderando os moradores, para que eles entendam o que é esse novo mundo e até que é preciso estabelecer uma segunda língua como o inglês. E, à medida que estamos avançando, vamos chegar à B3 e em breve teremos o primeiro unicórnio da favela.

E, hoje, quantos projetos estão disponíveis na Bolsa de Valores das Favelas?

Quando lançamos, pensamos em lançar 15 iniciativas. Mas vimos que tínhamos que testar. E começamos com uma, que foi a Favela Brasil Xpress. No primeiro dia, captou R$ 80 mil e agora chegou a meio milhão. A expectativa é, agora em março, fazermos um segundo evento com a inclusão de 483 startups de uma vez para captação. Fazendo uma grande mobilização. 

A pandemia da Covid-19 atravancou bastante o trabalho de vocês. Mas agora, com o avanço da vacinação e até com o trabalho de conscientização que vocês mesmos realizaram nas comunidades, quais os próximos passos?

Temos que resolver duas crises: a sanitária e a econômica. Criamos o G10 hub para acelerar negócios sociais, já são 18 e pretendemos ter 32 empresas dentro desta ação. Inauguramos o pavilhão social do G10 Hub em Betim (MG). Daqui a pouco, vamos inaugurar em Heliópolis (SP); no Maranhão, em Coradinho; no Morro do Alemão, no Rio,  e em Recife, na Casa Amarela. Pretendemos fazer isso ainda neste semestre.

Vamos lançar aqui, por meio de uma parceria com o Favela Brasil Xpress e a Speedbird, um projeto para fazer entregas com drones. A primeira favela do Brasil a ter esse serviço. Aí, quem vê de fora, com aquela ideia de favela violenta, vai criar uma série de problemas para que essa operação não aconteça. Mas nós vamos criar uma série de soluções para viabilizar a realização.

Quando nasceu esse empreendedor, esse líder, essa pessoa que faz questão de multiplicar para todo mundo a riqueza, em todos os sentidos, da favela? Tirando o favelado de um estereótipo violento?

Eu nasci no dia 16 de julho e nasci assim (risos). Mas não sabia exatamente o que era porque ao longo do tempo vão dando vários nomes. Eu acho que todo mundo tem um pouco de empreendedor, de liderança. Às vezes, a gente é líder em casa, entre os vizinhos e, se tiver essa liderança estimulada e trabalhada, dá certo.

Eu tive que me virar, eu não tive alternativa. Eu sou filho de uma mulher surda-muda, com 14 filhos. Minha mãe morreu cedo e nós fomos dados. Meus vizinhos e família me diziam que eu não ia virar gente, que ia virar bandido, que tinha sangue ruim e tinha que ir embora.

Na tentativa de me salvar, fui procurando bons caminhos, procurando estar dentro de alguma rede. Percebi que, à medida que eu estava fazendo meu trabalho para me salvar, eu estava dando oportunidade e sendo exemplo para outras pessoas.

E vejo que todo mundo pode cultivar isso. E eu descobri que eu falava que era filho da muda e isso era coitadismo, eu me via como pobrinho, filho da muda. E um dia alguém me falou: você não é filho da muda, você nasceu da muda e todo mundo nasce de uma muda que cresce, floresce e pode dar frutos se você decidir que quer isso. E eu não quero ser exceção na favela.